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Pax!

Passeio comunitário: Fomos ao Douro vinhateiro

Logo no primeiro capítulo da Regra do nosso Glorioso Patriarca S. Bento, encontramos quatro espécies de Monges, a primeira é dos cenobitas, isto é, dos que vivem em mosteiro e militam debaixo de mesma regra e dum abade. S. Bento põe de parte as outras três, elege e regula esta, como mais forte de todas.

E lá fomos nós, pelas nove horas da manhã, comunitariamente, sob a chefia do nosso Abade, em direcção ao Alto Douro, expoente máximo do belo, num sortilégio de rio e monte, xisto e granito, sangue e suor feitos néctar da ara do altar. A natureza, pela Clemência dos céus, tem poemas admiráveis que cantam as maravilhas da criação. São estrofes feitas de pedra, de árvores, de relevos, de planícies, de rios, de harmonia e contrastes semelhantes à musicalidade e ressonância dos salmos de David ou das sinfonias de Hyden.
Já, Socorro a cima, com a camioneta a bom ritmo, vêem-se, ao longe, marcos geodésicos da nossa juventude, a Senhora do Sameiro, muito longínqua e, mais próximo, a Senhora da Penha. P. André, sempre ele, e com piada fina de ilhéu, ia fazendo comentários a Figueiró City, terra do P. Marcos e P. Columba, Raimonda do P. Luís Nunes, Sousela do P. Simão e Figueiras do P. Albino. Com Penafiel à esquerda, sem nos despertar grande interesse, entrámos na auto-estrada rumo ao Cavalinho.
Mais uns quilómetros e começámos a subir o Marão em direcção a Mesão Frio, enfrentando dantescas penedias, um gigantesco vulto telúrico, erguido ao temor de Deus, onde a montanha, em plena grandeza, tinge de seriedade tudo em sua volta. Aqui até os lobos uivam de medo. Lá em cima, no ponto mais alto da serra, uma ermida, humilde e tosca, a Senhora da Serra. Um pouco a sul, destaca-se um outro ponto preeminente, as chamadas Fragas da Ermida, sobranceiras a um profundo despenhadeiro de quinhentos metros de desnível. Passámos Mesão Frio, portal do Douro, vila antiga e airosa, situada nas faldas do Marão e defronte da Serra do Montemuro, cabeça dum concelho vinhateiro duriense, dentro da zona demarcada dos vinhos finos.
Começámos a descer. A estrada decai sobre o profundo ribeiro da Teixeira, transpondo-o pela chamada ponte do Carrapatelo, sólida obra em granito da era Pombalina. Deparámos, então, com um quadro feérico de beleza e esplendor envolvido em vinhedos do Douro e do Marão. A paisagem é de veras soberba, exuberante, de inigualável beleza que não se pode dizer por palavras. Estas encostas ondulando, ondulando, ondulando num mar revolto de xisto até morrerem no céu, riscadas de mosto, com muita arte! Parece que ainda vemos a mão divina estendida naquela manhã genesíaca do faça-se da Criação. Em cada calço, em cada bardo, em cada vide, adivinha-se a mão calejada que, de manhã ao sol-pôr, cinzelou a sangue o monte. Socalcos, que são passadas titânicas de homem com cestos às costas, volumes, cor, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da nossa visão. As encostas, grandiosas e belas, batidas pelo suão, continuam a encher os horizontes, num viver de dor e trabalho. Feitas de matagais rebeldes, e de regatos tresmalhados, de carvalhos, castanheiros, velhos como o tempo, de muros sozinhos, de penhascos e grutas, que apascentam rezes. E veredas, quelhos, caminhos, que, como impressões digitais, gastas pelo uso, cruzam-se em serranias, levando ou trazendo venturas ou desventuras, calcorreando lágrimas e sorrisos.

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Acompanhados pela via-férrea que vem do Porto, entrámos na Régua pelas onze horas e pouco. Por ali ficámos a cirandar pela avenida marginal. Barcos que chegam, camionetes que partiam, davam vida a esta cidade transmontana, capital do turismo Douro Azul, mas ao mesmo tempo, cidade mártir das tropelias do Douro em noites de forte invernia. O rio dos antigos rabelos apresentava-se aqui submisso porque amordaçado entre duas fortes barragens, Bagaúste e Carrapatelo. O seu ímpeto e ferocidade quebrou-se, mais acima, na da Valeira, encurralando-o entre as escarpas do Marão e o altaneiro Santuário S. Salvador do Mundo.
Era meio-dia e um quarto. A nossa camioneta caminhava em marcha lenta por entre vinhedos, todos eles ricos e exuberantes, tingidos de verde-escuro da força dos vagos que amadurecem. Entrámos na quinta da Telhada, em Santa Marta de Penaguião, onde faríamos o convívio da refeição do almoço, numa soberba varanda virada para o Marão, propriedade de um antigo aluno do colégio de lamego, Doutor Paulo Dolores, que já nos acompanhava desde a Régua, juntamente com dois colegas de colégio, José Dolores e Carlos Borges. Estava mesa posta. Abrimos os nossos farnéis; de acordo com o petisco que metíamos á boca, havia uma qualidade de vinho apropriado. Juntaram- se a nós, em convívio, os nossos irmãos de Lamego: foi a partilha, a amizade, histórias que preencheram estas horas de descanso.

Em frente, os nossos olhos contemplavam a beleza absoluta, uma brisa de paz e frescura. É de um melro, com certeza, o trinado magistral que nos enleva e desvia os sentidos até à abstracção pura! Será isto, Senhor, o sagrado duma nesga de infinito na terra dos homens? Lá longe, a coroar todo este panorama vinhateiro, vêem-se os contornos da capital de Trás-os-Montes, Vila Real, em núpcias com o Marão, banhada pelo rio Cabril e com o Corgo aos pés, que corre, a toda a pressa, por entre quintas e quintas, a espraiar-se, já na Régua, nos braços do Douro e lá seguem os dois a causarem dores de cabeça às gentes ribeirinhas.
Aqui a Natureza e o trabalho do Homem se conjugam no milagroso esforço de transformar as encostas de seus montes em socalcos de vinha que são altares de esperança. Foi e é um trabalho de séculos, onde a pertinácia mergulha na terra adusta para a fazer florir em cachos de uvas que produzem o mais afamado vinho do Mundo. Por esta singular simbiose, Natureza e Homem, se fez do Douro vinhateiro uma prodigiosa cultura, espanto dos que ali acorrem, deixando que o olhar role pelas encostas cobertas dum verde aveludado, mensageiro da ternura, quando bardos requebrados de trabalho e canseiras, se desdobram em cascata de fartura, estandarte desfraldado de tanta fidalguia.
Rolávamos, sem pressa, atentos a todo este esplendor panorâmico, ao longo da margem esquerda do Douro, um pouco acima do nível das águas, pela estrada Régua-Pinhão, vinte e sete quilómetros, considerados pelas descrições da Internet, como a maior beleza do mundo. Do nosso lado esquerdo corre a linha férrea do Tua, rente às escarpas do Marão, por vezes tendo que recorrer a pequenos túneis abertos na rocha. Dum e doutro lado desta linha e do rio, a correr vertiginosamente, para a barragem de Bagaúste, a estrada, sem grandes curvas, mais semelhante a uma grande serpente rastejante, e lá em cima, sobre enormes ribanceiras xistosas, o mais vasto trecho de vinhedo que alimenta as quintas mais ricas e mais belas do Douro, que trepam pelos montes acima até se perderem de vista, porque depois começam outras para lá dos píncaros.
Uma bela quinta, à nossa direita, chamou-nos a atenção pelo nome pomposo, Quinta dos Frades, que, antes das lutas liberais, pertencia aos monges de Salzedas. Hoje é propriedade de luxo dos Condes de Riba d’Ave. A grandiosidade do vale não tem quebrantes. Sucedem-se as encostas povoadas de novas quintas, alcandoradas de majestosas vinhas e belos quadros panorâmicas. Durante o percurso o rio vai engrossando com uma quantidade de riachos a correr, por entre xistos pedregosos e bardos, em cascatas ou repuxos. Mas agora, num curto espaço de quilómetros, as coisas complicam-se com as chegada de três afluentes caudalosos, Távora, Torto e, mais adiante, o Pinhão. O Douro, fica assim, muito próximo da estrada e do caminho- de- ferro, principalmente no Inverno, tornando-se ameaçador e perigoso, controlado, graças à técnica, pela barragens de Bagaúste e Valeira. Naturalmente, no fim da marginal, aparece-nos a Vila do Pinhão, ponto de convergência de todas as estradas da região do Alto Douro e Vila Real, com estação do caminho-de-ferro e cais fluvial. Os termómetros rondavam os quarenta graus. Era necessário alguma bebida fresca, ali mesmo à mão, em bares à espera de turistas. Olhávamos para o alto, e no cômoro mais volumoso e mais alto, a quatrocentos metros de altitude, no cabeço de Monteiros, alcantilava-se a Quinta das Carvalhas, coroada por um marco geodésico, rainha de todas as quintas do Douro.
Eram dezassete horas. Transpusemos o rio Douro por uma ponte rodoviária, metálica, de três ramos assentes em pilares de granito, em direcção a Vila Real. O nosso destino era uma visita guiada à quinta do Portal, em Sabrosa. Deparámos com uma obra moderna, de Siza Vieira, à temperatura natural, repleta de belas pipas de carvalho. O momento da prova era a nossa despedida, em beleza, do Douro Vinhateiro. O cansaço era muito. Regressaríamos, rentes a Vila Real, pelo túnel do Marão, a vencer quilómetros, com ânsia de chegar a Singeverga. Entrámos na mata da nossa cerca, pelas dezoito e trinta, cheios de bem-estar e contentamento. Nas mesas, debaixo do arvoredo, em convívio fraterno, comemos o resto do nosso farnel, como refeição da noite, sem pressa nem horas. Obrigado, Sr. D. Abade. Para o ano queremos mais!

Pe. Abel Matias, OSB