Homilia da noite de Natal
Caros Irmãos, acabámos de escutar no Evangelho: «Chegou o dia de Maria dar à luz e teve o seu Filho primogénito. Envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria» (Lc 2, 6b-7). Esta frase que resume o mistério desta noite em que celebramos o nascimento de Cristo, segundo a carne, foi também a frase que inspirou a execução do presépio de Paulo Neves que temos diante de nós, pela primeira vez, nesta nossa igreja abacial de Singeverga.
Assim, a figura de Maria é mais alta do que a de José para realçar, precisamente, a sua importância e proeminência no mistério da Incarnação do Senhor. Mistério mais alto que o de José, porque, por ela, Deus assumiu a natureza humana, nascendo de mulher, como todo o género humano. De facto, nela se realizaram as promessas do Senhor anunciadas pelos profetas: «A virgem conceberá e dará à luz o Filho, a quem porá o nome de Emanuel, que quer dizer “Deus connosco”» (Is 7, 14; Mt 1, 23). É uma figura feminina que mantém conjuntamente o seu aspecto materno e virginal, de acordo com a tradição patrística. Com efeito, podemos remontar ao papa S. Leão Magno (séc. V), que exalta a figura de Maria como virgem antes e depois do parto, e ao belo texto de S. Bernardo (séc. XII), que se lê no ofício de leitura da Liturgia das Horas no dia 20 de Dezembro, e que apresenta Maria como aquela que «crê, consente e recebe», aquela que, à voz do anjo, «abriu o coração à fé, os lábios ao consentimento, as entranhas ao Criador».
Indubitavelmente, menos importante do que Maria no Mistério da Incarnação de Deus, a figura de José é, por isso, mais baixa do que a da Virgem, justamente para que não fiquem dúvidas acerca do seu papel secundário neste mistério. Dizemos secundário, mas que não deixa de ter o seu relevo. A profecia do capítulo 24 do livro dos Números serviu de ponto de partida para a execução da imagem: «Oráculo de Balaão Filho de Beor, oráculo do homem de olhar penetrante, oráculo de quem ouve a palavra de Deus e conhece a ciência do Altíssimo... Vejo, mas não agora, eu contemplo, mas não de perto: uma estrela brilha em Jacob e um ceptro surge em Israel» (Nm 24, 15b-17). Este ceptro é, sem dúvida, o do reinado de David e pelo qual se atesta que o Messias esperado deveria pertencer à linhagem davídica, o que é confirmado pela genealogia do Evangelista Mateus que apresenta 14 gerações de Abraão até David, 14 gerações de David até ao exílio da Babilónia e 14 gerações desde o exílio até Jesus (Mt 1, 1-17).
Por outro lado, José possui um ceptro que na iconografia cristã tem a forma de uma açucena que, por sua vez, é para os cristãos sinal da sua castidade, conferindo-lhe o seu papel de protector e de homem silencioso que coopera no mistério de Deus sem colocar entraves ao seu modo de agir. A colocação da açucena ensina-nos que José não é o pai biológico do menino que nasceu da Virgem Maria: o menino que nos foi dado é filho de Deus, mas não de José. Por esse motivo, a açucena é o ponto mais alto, que atrai o nosso olhar, para nos lembrar a paternidade divina e a sua acção em favor dos homens.
Por fim, o mais importante do presépio, «o menino que nos foi dado, o menino que nasceu para nós», como cantávamos na oração de vigílias que precedeu esta celebração da eucaristia desta noite de Natal, aquele que, ao nascer, foi «envolvido em panos, e deitado numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria», como escutámos no Evangelho que acabou de ser proclamado. A pesquisa da iconografia oriental ajudou-nos a dar forma à imagem, na qual o menino se apresenta envolvido em faixas, que anunciam o mistério do que havia de acontecer: este filho de Deus não se valeu da sua condição divina, mas humilhou-se a si mesmo, humilhando-se até à morte e morte de cruz (Fl 2, 6-8). As faixas dizem-nos que este menino, pela sua natureza humana, havia de morrer. Simultaneamente, as faixas representam não só a morte, mas também a passagem da morte à vida, como nos ícones que retratam a ressurreição de Lázaro. Representado a sair do sepulcro, Lázaro, envolto em ligaduras (cf. Jo 11, 44), é figura do Baptismo, pelo qual o catecúmeno, renascido das águas baptismais, se apresenta como nova criatura, recebendo a veste branca dos eleitos.
Desta forma, nascido de uma virgem e envolto em panos, enfaixado como Lázaro, o menino contém já em si o percurso que se havia de seguir: o anúncio do reino de seu Pai, a sua morte e ressurreição. A imagem do percurso de Jesus é, indubitavelmente, a imagem do corpo humano assumido por Deus.
No corpo o homem experimenta um caminho em que ao passado sucede o futuro: o corpo anuncia o futuro como realidade ainda não conhecida, como realidade possível, mas não definível. De facto, uma realidade que ainda não existe, porque pertence ao futuro e ultrapassa qualquer compreensão exaustiva, é exactamente a realidade vivida na esperança. Por outras palavras, o corpo impede o homem de se identificar com o que foi e com o que é actualmente: o corpo revela ao homem que a sua identidade não foi ainda toda desvelada. Podemos dizer que o corpo revela a diferença no tempo, isto é a diferença entre o passado e o futuro, e impede o homem de se identificar apenas com o passado, de tal modo que o corpo, símbolo da diferença humana, abre o homem àquela dimensão do futuro sem o qual não se poderia ter esperança.
O corpo, no entanto, mantém também a ligação entre o passado e o futuro: embora estes dois momentos do tempo sejam diferentes, permanece que o corpo aberto ao futuro é o mesmo que se foi construindo no passado. O corpo é o tempo do homem, o tempo que recolhe aquilo que foi e deixa-o andar para aquilo que ainda não é. Por outras palavas, graças ao corpo, mesmo diferente do passado, não lhe é estranho: no corpo, passado e futuro solidarizam-se. O futuro, enquanto diverso do passado, vem como novidade, mas, enquanto solidário com o passado, não aparece como um estranho. Todavia, uma novidade que não seja estranhada conjuga dois aspectos fundamentais da esperança: a espera e a confiança. A novidade diz a espera e a não estranheza diz a confiança. A esperança remete para uma novidade não estranha, isto é, uma espera cheia de confiança. Neste sentido, o corpo, enquanto possibilidade do futuro como novidade não estranha, é o autêntico lugar da esperança.
Temos, por conseguinte, estas três imagens que nos retratam com toda a simplicidade o mistério da Incarnação de Deus. Mistério este que não estaria completo se nos sentíssemos apenas espectadores deste cenário. Na verdade, para compreender o papel da humanidade é preciso acrescentar que se trata de três imagens executadas a partir de um tronco de uma árvore, mais precisamente um cedro, símbolo da vida e do perfume de Deus, com mais de duzentos anos, e que se encontrava, portanto, em fim de vida.
Ora, de acordo com o Talmude, os Judeus queimavam madeira de cedro do Líbano no Monte das Oliveiras para anunciar o início do ano novo. Vários reis da região, bem como de países distantes, procuravam a sua madeira para as suas construções civis ou religiosas, sendo o caso mais famoso o da construção do Templo de Salomão em Jerusalém, bem como dos Palácios de David e Salomão. A árvore é, aliás, mencionada 75 vezes na Bíblia e é símbolo da majestade de Deus. Uma árvore resistente, mas pouco tolerante à sombra, já que prefere os locais onde existe sol total, torna-se, portanto, a árvore propícia para ilustrar o mistério do Natal, a solenidade que coincide com o solstício de verão, com o qual começam os dias a ganhar mais luz.
Além disto, e falando do corpo material do presépio, é preciso dizer algumas palavras sobre a matéria. A matéria, como foi sublinhado por alguns autores, é o princípio da pura potencialidade. Quando a matéria toma forma tem-se uma realidade definitiva, como uma árvore, uma pedra, um jumento. Uma árvore é uma realidade definida porque não pode ser outra coisa senão uma árvore. Mas a matéria que compõe a árvore poderia compor outras coisas, outras realidades. A matéria é o âmbito ou o princípio das potencialidades, o âmbito ou princípio de novas e possíveis realizações, o âmbito ou princípio do futuro. A árvore, enquanto forma definida, uma vez destruída já não tem futuro. A matéria da árvore, pelo contrário, tem um futuro porque pode assumir novas formas. Assim, pela matéria e graças à matéria há sempre a esperança de alguma coisa nova.
Por este motivo, não pode ser descuidada aquela dimensão da Incarnação de Deus que, assumindo a natureza humana, se conjuga com a matéria, isto é, a dimensão somática. A Incarnação de Deus ensina-nos que o corpo não é só matéria, mas sim que é também matéria, e, enquanto tal, entrega o homem ao mundo das possibilidades. Ao assumir a matéria (natureza) humana, Deus desvela ao homem um universo de possibilidades, das quais a maior é a de reconduzir a natureza humana ao paraíso que havia perdido pelo pecado, isto é, a reabertura à possibilidade de se divinizar, recuperando a imagem que havia perdido. É o que nos diz o segundo prefácio proposto para este tempo de Natal: «No mistério do seu nascimento, Aquele que, por sua natureza, era invisível tornou-se visível a nossos olhos. Gerado desde toda a eternidade, começou a existir no tempo, para renovar em Si a natureza decaída, restaurar o universo e reconduzir ao reino dos céus o homem perdido pelo pecado».
Dom Abade Bernardino Costa